A proteção dos contribuintes em xeque

Um estudo comparado entre a ditadura e a democracia

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Por Danielle Bertagnolli

Fonte: Artigo publicado na coluna Women In Tax Brazil do portal JOTA, em 25/10/24.

A Constituição Federal foi promulgada em 1988, em um momento de retomada do Estado democrático de Direito. Na ocasião, a busca pela segurança jurídica levou os constituintes a garantirem direitos individuais dos cidadãos, dentre os quais se destacam a segurança jurídica, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a proporcionalidade e a razoabilidade.

Não obstante, tem-se visto uma tendência das Cortes Superiores à mitigação de tais direitos, de modo a valorizar o pagamento dos débitos que são objeto de ações judiciais. Em detrimento dos direitos fundamentais dos devedores, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm autorizado a utilização de medidas excepcionais de coerção para o pagamento dos débitos que são objeto de processos judiciais.

Na década de 1960, o STF editou três súmulas que garantiam os direitos dos contribuintes contra as então mais comuns formas de afronta. São as Súmulas 70, 323 e 547, que assim dispuseram:

  1. Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo;
  2. Súmula 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos; e
  3. Súmula 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Os enunciados demonstravam uma preocupação do STF em garantir que os contribuintes seguissem exercendo regularmente suas atividades empresariais, mesmo com débitos tributários. Assim, a interdição de estabelecimento e a apreensão de mercadorias não poderiam ser utilizadas como formas de coagir os contribuintes ao pagamento dos tributos devidos, bem como a Fazenda Pública não poderia impedir a aquisição de estampilhas necessárias à regularização dos produtos ou por qualquer outro meio impedir o livre exercício das atividades.

Aparentemente, estava muito clara no STF a noção de que, impedindo-se o contribuinte de exercer sua atividade empresarial, aí sim é que se estaria inviabilizando a quitação do tributo devido, porquanto não se teriam receitas suficientes para garantir o pagamento.

Contudo, a jurisprudência mais recente tem demonstrado uma tendência do STF e do STJ para a flexibilização dos direitos dos devedores em processos judiciais na busca por uma maior efetividade no recebimento dos valores pelos credores em geral.

Nesse contexto, o Partido dos Trabalhadores ajuizou a ADI 5.941, sustentando que não se poderia admitir o impedimento à participação em licitações, a apreensão de passaporte ou de carteira nacional de habilitação como atos executivos, sob pena de violação à liberdade de locomoção e à dignidade da pessoa humana.

A ação foi julgada improcedente, mantendo-se hígido o artigo 139 do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece como dever dos juízes “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

Não se desconhece o fato de que os juízes poderão utilizar medidas coercitivas excepcionais, já que foram previstas no CPC. Contudo, dois pontos devem ser salientados:

  1. as medidas excepcionais devem ser aplicadas de modo isonômico, ou seja, se aplicáveis aos contribuintes, deverão também ser aplicadas nos processos em que a Fazenda Pública for devedora; e
  2. no processo tributário, por força da Lei de Execuções Fiscais (Lei  6.830/1980), a aplicação do CPC é subsidiária, já que a própria Lei  6.830/1980 prevê medidas ordinárias suficientes para a garantia do cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes.

Em outro caso tem-se uma completa e inequívoca ofensa ao direito do contribuinte ao contraditório e, bem assim, ao devido processo legal. Trata-se de processo judicial em que, mesmo após o cumprimento da ordem de penhora online nas contas bancárias do contribuinte, foi mantido o sigilo incidente não apenas sobre a petição em que requerido o bloqueio de valores, como também sobre o restante dos autos processuais.

A decisão foi proferida no agravo interno no AREsp 2.366.809/SP, que não conheceu da ofensa à legislação infraconstitucional, mantendo o sigilo da petição e da determinação de bloqueio na conta bancária do executado.

É sabido que, ao protocolar pedido de penhora online, a Fazenda Pública comumente insere caráter de sigilo na petição, assim como a decisão que defere o pedido de bloqueio também figura com sigilo até que seja cumprida. Trata-se de medida tendente a evitar que, sabendo da existência de pedido de penhora online, o contribuinte esvaziasse suas contas bancárias, impedindo a eficácia da medida.

Não obstante o sigilo nesta fase anterior ao cumprimento da medida já se mostre como ofensivo ao contraditório e ao devido processo legal, a medida é compreensível para que se tenha por, de fato, cumprida a eficácia da penhora online.

Contudo, em hipótese alguma se pode admitir a manutenção do sigilo após a realização do bloqueio. A retirada do sigilo é medida imprescindível para que o devedor possa adequadamente promover sua defesa, sob pena de se consolidar a ofensa ao contraditório e ao devido processo legal. Assim, havendo ofensa direta à Constituição Federal, a manutenção do sigilo após o cumprimento da decisão que determinou o bloqueio da conta bancária do contribuinte deveria ser apreciada pelo STF, porquanto encontra-se no seu âmbito de julgamento. Todavia, até o momento não se tem notícia de que a Corte Constitucional tenha recebido demanda nesse sentido.

A manutenção do sigilo após o cumprimento da determinação de bloqueio também implica ofensa à legislação federal, em especial ao artigo 107 do CPC, que garante o direito dos advogados de ter acesso aos autos dos processos judiciais. Em relação às ofensas à legislação infraconstitucional, o STJ não conheceu do recurso especial interposto sob o n. 2.366.809/SP, de modo que também nesta Corte o mérito da questão não chegou a ser apreciado.

O que resta, então, é novamente a insegurança jurídica, porquanto, sem manifestação das Cortes Superiores impedindo tal manutenção do sigilo, os tribunais locais poderão seguir não só o impondo, como também, indevidamente, obstando a regular defesa dos interesses dos réus pela manutenção do sigilo mesmo após o cumprimento da medida de penhora online.

Assim, é interessante notar que antes da Constituição Federal de 1988, os direitos dos contribuintes aparentavam ser mais protegidos do que após a sua promulgação, mesmo com as garantias fundamentais dos cidadãos previstas, que, em teoria, não deveriam sofrer qualquer limitação. Diferentemente, desde 1988 foi consagrado o Estado Democrático de Direito com a edição da atual Constituição Federal, na qual foram previstos e garantidos diversos direitos à população como um todo.

Contudo, nos últimos anos tem-se visto uma progressiva mitigação dos direitos dos contribuintes, inclusive com a instauração de segredo de justiça que impossibilita o devedor de regularmente promover sua defesa, em verdadeiro processo judicial "kafkiano".

Disso decorre a necessidade de uma reforma do processo judicial tributário e da maximização dos meios alternativos de resolução de conflitos na esfera tributária, a fim de que sejam plenamente respeitados os direitos constitucionais dos contribuintes e, ao mesmo tempo, se tenha eficácia na cobrança dos débitos tributários, assim garantindo uma sociedade mais justa e igualitária, com o equilíbrio da carga tributária e afastamento de indevidos privilégios tanto em favor de contribuintes inadimplentes quanto em favor da Fazenda Pública.

Fonte da imagem: Moeda comemorativa dos 25 anos do Real / Crédito: Raphael Ribeiro/BCB