Questões pacificadas na regulamentação da reforma tributária

A reforma tributária foi promulgada no final de 2023 e, atualmente, estão em discussão as propostas de leis complementares para sua regulamentação.

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Fonte: Artigo publicado no site do CONJUR, em 10/07/24.

A reforma tributária foi promulgada no final de 2023 e, atualmente, estão em discussão as propostas de leis complementares para sua regulamentação. Uma delas é o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68/2024, para regulamentar a instituição e a cobrança do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição social sobre Bens e Serviços (CBS).

O PLP nº 68/2024 inclui a regulamentação dos setores com regime de tributação diferenciada, dentre os quais se incluem os serviços financeiros. Porém, ao buscar regulamentar a cobrança do IBS e da CBS sobre tais serviços, o legislador acabou por determinar a pacificação de diversos conflitos que vêm sendo travados judicialmente em relação ao PIS e à Cofins.

É o caso da possibilidade de dedução, da base de cálculo do PIS e da Cofins, das perdas incorridas em razão da atividade creditícia e dos custos com assessores de investimento e com consultores de valores mobiliários.

Por força do artigo 10, inciso I, da Lei nº 10.833/2003 e do artigo 3º, § 6º, da Lei nº 9.718/1998, a apuração do PIS e da Cofins das instituições financeiras ocorre pelo regime cumulativo, sem possibilidade de créditos em relação às despesas com insumos. Em razão da natureza da atividade, todos os meses são contabilizadas perdas decorrentes da inadimplência de parte dos contratos firmados com os clientes. E quanto a essas potenciais perdas, para evitar riscos de mercado e default, que poderiam prejudicar a economia brasileira como um todo, o Banco Central exige a constituição de uma conta contábil para Provisão para Credores de Liquidação Duvidosa (PCLD), nos termos do artigo 6º da Resolução Bacen 2.682/1999.

Dedução dos valores das perdas pela reversão da PCLD

Quando os valores são de fato inadimplidos pelos clientes das instituições financeiras, uma parcela da PCLD poderá ser revertida para a conta contábil de perdas, tornando-se, efetivamente, um prejuízo para o banco. O artigo 3º, § 6º, inciso I, alínea “a”, da Lei nº 9.718/1998 permite que sejam deduzidas as “despesas incorridas nas operações de intermediação financeira”. Como despesa operacional necessária à manutenção das atividades empresariais, a dedução das perdas resultantes da reversão da PCLD passou a ser questionada judicialmente, assim como as despesas com assessores de investimento, que igualmente podem ser incluídas no conceito de despesas necessárias para a operação.

Independentemente do status atual das discussões no Poder Judiciário, a reforma tributária, com a regulamentação proposta pelo PLP nº 68/2024, trouxe a possibilidade de dedução dos valores das perdas incorridas no recebimento de créditos (ou seja, as perdas decorrentes do inadimplemento dos clientes) e despesas com assessores de investimento e com consultores de valores mobiliários da base de cálculo da CBS e do IBS, doravante encerrando o debate a respeito do tema.

Aproveitamento de créditos tributários

Também foi pacificada a discussão relativa à possibilidade das empresas tomadoras de crédito, desde que sujeitas ao regime geral do IBS e da CBS, aproveitarem créditos tributários em relação às despesas financeiras – outra situação que estava em discussão no Poder Judiciário em relação à possibilidade de crédito de PIS/Cofins sobre as despesas financeiras, e foi inserida no PLP nº 68/2024. Nesse caso, o principal fundamento da discussão se refere à manutenção da neutralidade em relação aos débitos e créditos do PIS/Cofins.

Com efeito, se de um lado as empresas estão sujeitas à incidência de PIS/Cofins sobre suas receitas financeiras, é legítimo que, em observância ao princípio da não-cumulatividade, lhes seja autorizado apurar e aproveitar créditos de PIS/Cofins sobre as despesas financeiras nas quais incorrem. Assim é que, a fim de manter-se a neutralidade da tributação e atender à regra da não-cumulatividade prevista na Constituição (artigo 195, § 12), as Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 regulamentaram o regime não-cumulativo de apuração do PIS e da Cofins, definindo quais custos e despesas geram créditos ao contribuinte.

Não obstante a redação original das referidas leis possibilitasse a apuração dos créditos sobre “despesas financeiras decorrentes de empréstimos, financiamentos e o valor das contraprestações de operações de arrendamento mercantil de pessoa jurídica, exceto de optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – Simples”, o inciso que assim dispunha foi revogado pela Lei nº 10.865/2004, impedindo-se a apuração e o aproveitamento dos créditos.

A supressão do direito aos créditos não tinha qualquer impacto quando a tributação das receitas financeiras se encontrava com as alíquotas de PIS e Cofins zeradas, o que vigorou até 2015. Todavia, com o restabelecimento da cobrança do PIS/Cofins sobre as receitas financeiras, as empresas passaram a postular a possibilidade de apuração e aproveitamento de créditos de PIS/Cofins sobre as despesas financeiras, sob pena de violação da não-cumulatividade das contribuições.

Com o advento da reforma tributária e se for mantida a previsão do artigo 181, § 1º, do PLP nº 68/2024, o crédito será calculado pela diferença entre o valor da taxa Selic e os juros aplicados na operação de crédito em questão, encerrando mais esta discussão judicial entre o Fisco e os contribuintes, que não será migrada para os possíveis debates judiciais a respeito do novo regime tributário. 

Arranjos de pagamento

Por fim, outra questão importante que vinha sendo discutida judicialmente e foi sedimentada no PLP nº 68/2024 de maneira favorável aos contribuintes diz respeito à possibilidade do tomador dos serviços de arranjos de pagamento (dentre os quais se inserem as chamadas “máquinas de cartão de crédito e débito”) poder apurar créditos dos valores pagos à prestadora dos serviços de arranjos de pagamento, desde que esteja sujeito ao regime geral de tributação do IBS e da CBS.

A questão guarda relação direta com a possibilidade de créditos de PIS/Cofins sobre as tarifas de administração dos cartões de crédito e débito. Novamente vemos, nesta situação, a busca do legislador pela pacificação de alguns dos conflitos tributários atualmente em discussão no Poder Judiciário.

Validações

Não é demais lembrar que a reforma tributária se baseou na aplicação do princípio da não-cumulatividade ampla, previsto nos artigos 156-A, § 1º, inciso VIII, e 195, § 16, da Constituição Federal, inseridos no texto pela Emenda Constitucional nº 132/2023. A não-cumulatividade, contudo, já era objeto de previsão constitucional para o PIS e a Cofins, destacada para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal por meio do Tema nº 756 (“alcance do artigo 195, §12, da Constituição Federal, que prevê a aplicação do princípio da não-cumulatividade à contribuição ao PIS e à Cofins”).

Na medida em que o § 12 do artigo 195 da Constituição determinava a aplicação do princípio da não-cumulatividade na apuração do PIS e da Cofins, os contribuintes passaram a sustentar a inexistência de quaisquer restrições constitucionais quanto às despesas que podem ser utilizadas como base de crédito, de modo que não pode a lei infraconstitucional usurpar da competência que é própria do poder constituinte, razão pela qual seriam inconstitucionais as limitações ao crédito impostas pelas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, afastou a pretensão dos contribuintes e determinou que “o legislador ordinário possui autonomia para disciplinar a não-cumulatividade a que se refere o artigo 195, § 12, da Constituição, respeitados os demais preceitos constitucionais, como a matriz constitucional das contribuições ao PIS e Cofins e os princípios da razoabilidade, da isonomia, da livre concorrência e da proteção à confiança”, tal como se extrai da tese firmada no âmbito do Tema nº 725 do STF.

Assim, ao mesmo tempo em que a reforma tributária buscou consolidar a neutralidade fiscal e a plena não-cumulatividade do IBS e da CBS, a experiência recente nos mostra a validação, pelo Supremo Tribunal Federal, das normas infraconstitucionais que limitaram a aplicação da plena não-cumulatividade para o PIS/Cofins. Nesse contexto, é positiva a previsão do PL nº 68/2024 quanto a diversos créditos e deduções da base de cálculo do IBS e da CBS, dentre os quais se inserem os ora tratados, como as despesas financeiras e as tarifas de administradoras de cartões.

Outras discussões, contudo, não chegaram a ser abrangidas pela reforma tributária e sua regulamentação, como é o caso dos créditos de PIS/Cofins sobre despesas de publicidade. Quanto a estas e outras despesas, poderá sobrevir discussão a respeito da possibilidade de apuração dos créditos de IBS e CBS com base na apregoada não-cumulatividade.

 

Danielle Bertagnolli - Advogada - Carpena Advogados

Crédito da imagem: https://www.conjur.com.br/2024-jun-13/ibs-cbs-e-a-exportacao-de-servicos-financeiros/