Vive-se hoje uma crise sem precedentes neste século XXI. A pandemia causada pela disseminação do COVID-19 afetou e continuará a afetar todos os países, tanto do ponto de vista das relações Estado-indivíduo, quanto do das relações entre particulares.
Dentre as várias medidas recomendadas pelas autoridades estrangeiras e nacionais estão aquelas que se traduzem, sinteticamente, no chamado "isolamento social". Afora os efeitos individuais causados por essa estratégia de combate à propagação do vírus, tem-se verificado inúmeros outros, notadamente no âmbito das relações econômicas. Nesse sentido, já são perceptíveis alguns reflexos: queda da bolsa de valores e da produtividade, suspensão ou diminuição de atividades (notadamente no setor de serviços), modificação das relações cambiais e redução do faturamento dos estabelecimentos empresariais, dentre outros.
Diante desse cenário, um dos questionamentos mais frequentes diz respeito à possibilidade de prorrogação, suspensão ou até mesmo cancelamento de obrigações contratualmente assumidas. A pertinência de tais questionamentos é motivada, principalmente, pelo fato de que as medidas governamentais que vêm sendo adotadas envolvem, em muitos casos, prorrogações e suspensões de prazos ou flexibilização de obrigações e deveres legais (tributárias e financeiras ou regulatórias, a exemplo daquelas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional em favor do bancos, a fim de que estes tivessem melhores condições de renegociar os contratos mantidos com seus clientes).
A questão não é simples, razão pela qual é preciso fixar algumas premissas. Em primeiro lugar, e diferentemente daquilo que muitos pensam, a atual crise não autoriza, por si só, qualquer modificação das relações contratuais. Vale dizer: as obrigações contratuais continuam sendo exigíveis e devem ser cumpridas nos exatos termos em que assumidas, e o fundamento disso está no que se chama de "força obrigatória dos contratos".
Em segundo lugar, qualquer modificação das relações contratuais depende, via de regra, do consenso entre os envolvidos. Com exceção dos chamados "contratos por adesão", o conteúdo das obrigações é estabelecido, normalmente, por ambas as partes contratantes, ou seja, é resultado de combinações, razão pela qual a alteração de seus termos também depende, na maioria dos casos, da convergência de vontades (e isso vale, em princípio, também para os contratos por adesão).
Em terceiro lugar, é preciso reconhecer que ninguém pode ser forçado a permanecer contratado; todavia, isso não quer dizer que seja sempre possível romper relações sem que se assumam consequências. Os contratos existem para ser cumpridos, e a previsibilidade das relações econômicas disso depende. A mora e seus efeitos não estão afastados, automaticamente, pela atual crise.
Dessas premissas, contudo, não decorre a conclusão que as relações contratuais, mesmo aquelas de caráter continuado ou duradouro (fornecimento ou financiamento p. ex.), não possam ser afetadas por eventos que ocorram durante o seu desenvolvimento, pois muitos deles efetivamente autorizam, quando realmente existentes, não só sua modificação como, no limite, podem até mesmo eximir os contratantes dos efeitos de eventual descumprimento daquilo que fora pactuado. Não é por outra razão que o Código Civil brasileiro (Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002) prevê, em seu artigo 393, que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado" (embora haja muita discussão sobre o significado de tais expressões, costuma-se dizer que o caso fortuito tem a ver com fenômenos naturais, que não envolvem ação humana, e a força maior aqueles que causam desequilíbrio na relação contratual), e em seu artigo 478 que "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato".
A utilização dessas disposições, porém, exige atenção. Em primeiro lugar, é preciso analisar se a crise atual (e os diversos fenômenos a ela associados ou dela decorrentes) pode ser considerada, no contexto específico do contrato, como algo que possa ser caracterizado como um caso fortuito ou de força maior. Trata-se de análise que não pode ser feita de modo desvinculado das peculiaridades de cada uma das relações contratuais.
Em segundo lugar, é preciso verificar se as partes não assumiram o risco por eventos como os que hoje ocorrem no Brasil e no mundo (não exatamente pandemias, mas fenômenos similares ou análogos). Se as partes, ao estabelecer o conteúdo do contrato, assumiram expressamente os riscos por eventos imprevisíveis ou inafastáveis similares aos atuais, tem-se que não poderão, em princípio, invocar as regras legais antes mencionadas para se eximir de suas obrigações.
Mas note-se: mesmo quando não tenham assumido os riscos, se eles puderem ser razoavelmente considerados como abrangidos pelo objeto do contrato, as partes também não poderão alegar tais eventos. Os tribunais, a propósito, têm sido rigorosos na análise de tal aspecto, pois um mesmo evento pode ser considerado como de força maior para uma determinada relação ou atividade e não para outra.
Em terceiro lugar, é preciso analisar se o fenômeno ou evento, que precisa ser imprevisível e de efeitos inafastáveis, está realmente afetando o cumprimento das obrigações assumidas no âmbito da relação contratual. Em outras palavras, não basta um contexto geral de crise se, no caso concreto, ela não produz efeitos que tornam o cumprimento das obrigações impossível ou excessivamente oneroso (até porque, como mencionado, as atividades econômicas são afetadas de diferentes maneiras e graus). Daí porque é preciso, portanto, que o contratante reúna elementos concretos (documentos, relatórios, notificações etc.) capazes de demonstrar sua real incapacidade de cumprir as obrigações contratuais. Do contrário, não poderá pleitear a revisão das condições contratuais ou o afastamento das consequências da sua inexecução, pois não poderá provar que a crise o afetou.
Disso tudo se pode dizer que é preciso cautela e bom senso na análise dos efeitos jurídicos dos diversos fenômenos e eventos relacionados às medidas de combate à pandemia. A busca de qualquer solução para os problemas contratuais deve ser buscada, em princípio, pelo diálogo, sempre pautado pela boa-fé.
Considerando o exposto e o impacto direto nas operações empresariais, a Carpena Advogados coloca-se à disposição para sanar quaisquer questionamentos que se façam necessários.