Multa coercitiva: titularidade do crédito e eficácia

A multa coercitiva, denominada também astreinte, em face de sua origem francesa, representa hoje um dos mais evoluídos mecanismos de prestação

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A multa coercitiva, denominada também astreinte, em face de sua origem francesa, representa hoje um dos mais evoluídos mecanismos de prestação de tutela jurisdicional específica, voltando-se à coação do réu, a fim de que faça algo, abstenha-se de determinada conduta ou entregue determinado bem, sob pena de incidir em multa fixada a critério do magistrado: como asseverou o jurista francês Jean Carbonnier, agride-se a carteira para forçar a vontade (apud ARENHART, 2000, p. 193).

 

Muito se debate, no entanto, acerca da titularidade do crédito decorrente da eventual incidência de tal cominação judicial, havendo, ao redor do globo, sistemas jurídicos que atribuem tais valores à parte beneficiada pela medida (como a própria França, berço do instituto), ao Estado (como faz o ordenamento jurídico alemão) ou a ambos (como ocorre em Portugal).

 

A jurisprudência brasileira, na esteira do ordenamento jurídico francês, optou – embora inexista qualquer previsão legal nesse sentido – por atribuir à parte beneficiada pela imposição da multa coercitiva o crédito resultante de sua incidência.

 

Ocorre que, embora grande parte da doutrina nacional se mostre descontente com a atribuição de tal valor à parte autora, poucos são aqueles autores que se opõem a essa situação, como refere Arenhart (2008, p. 241-242). Para o autor, a fim de que a multa coercitiva – que, como destaca Amaral, nada mais é do que técnica processual destinada a forçar o adimplemento (2010, p. 69) – goze de maior eficácia, necessário atribuir-se o crédito decorrente de sua incidência ao Poder Público.

 

Mas e quais as consequência de tal alteração?

 

Atualmente, o que se verifica na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é um conflito de princípios claramente insuperável: de um lado, busca-se impor, a título de astreintes, valores expressivos, capazes de coagir o réu ao adimplemento e, de outro, procura-se evitar o enriquecimento injustificado do autor, que, sem prejuízo de juros moratórios e eventuais perdas e danos, seria beneficiado por técnica de tutela que, por natureza, não dispõe de qualquer caráter indenizatório (BRASIL, 2003, p. 182).

 

Sob tal perspectiva, é muito comum, em todas as instâncias do Poder Judiciário, verificar-se a cominação de valores irrisórios a título de multa coercitiva, simplesmente para que o autor (que, em verdade, não busca tal crédito, mas sim um fazer, não fazer ou a entrega de um bem pelo réu) não tenha um acréscimo patrimonial injustificado, olvidando-se, no entanto, que, em se tratando de técnica processual, qualquer valor atribuído a esse título ao autor será, necessariamente, injustificado: como afirma Arenhart, “entregar ao autor esse dinheiro é aumentar seu patrimônio sem qualquer motivo legítimo que autorize a tanto. O autor ganha dinheiro porque o ordenado desobedeceu a uma ordem judicial” (2008, p. 244-245).

 

Nesse contexto, atribuir-se o crédito resultante da incidência da multa coercitiva ao Estado implica suprimir o elemento enriquecimento sem causa da equação, garantindo ao juiz o poder de fixar a multa no montante que entender suficiente para dobrar a vontade do réu, forçando-o ao adimplemento (MARANHÃO, 2001, p. 132). Significa, em outros termos, garantir maior eficácia ao instituto.

 

E isso porque “o principal objetivo da multa não é o efeito direto que resulta dela, mas o efeito colateral que ela produz, de influir no ânimo do obrigado, estimulando-o ao cumprimento da sua obrigação no menor espaço de tempo possível” (ALVIM, 2006, p. 117). Nesse contexto, resguardados os limites da proporcionalidade, quanto maior o valor da multa, maior será, em tese, a coerção exercida sobre o réu, fazendo-o cumprir o que dele se exige e, em consequência, garantindo ao autor a tutela jurisdicional efetiva que busca do Poder Judiciário.

 

Ainda assim, vale destacar que a simples atribuição do crédito das astreintes ao Estado não constitui solução para um imediato aumento de sua efetividade. Para tanto, é necessário, também, que sua execução pelo Poder Público seja efetiva, na medida em que o caráter coercitivo do instituto não decorre apenas de sua cominação, mas igualmente – e principalmente – da certeza de sua pronta execução.

 

Com isso, conclui-se que a atribuição do crédito decorrente da incidência da multa coercitiva ao Estado decorre da própria essência do instituto, enquanto a efetiva execução de tais valores pelo Poder Público é o único meio de, atendendo ao direito fundamental à prestação de tutela jurisdicional efetiva, dar-lhe verdadeira eficácia.

 

ALVIM, José Eduardo Carreira. Alterações do Código de Processo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras. 2. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina da multa coercitiva: três questões ainda polêmicas. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 396, p. 233-255, mar. 2008.
ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
BRASIL, Deilton Ribeiro. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
MARANHÃO, Clayton. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. In: MARINONI, Luiz Guilherme; DIDIER JR., Fredie (coords.). A segunda etapa da reforma processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001.