A interferência de terceiro(s) na relação contratual

A instituição de cláusulas e condições claras e exaurientes a qualquer relação contratual que se pretenda estabelecer

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A instituição de cláusulas e condições claras e exaurientes a qualquer relação contratual que se pretenda estabelecer é um ponto de partida importantíssimo para garantir o adimplemento ou, ao menos, minimizar os riscos e possíveis prejuízos dele decorrentes. Ocorre que, apesar de adotados todos os cuidados necessários, não raras vezes, umas das partes, aliciada por um terceiro, acaba por inadimplir o contrato ou mesmo rompê-lo. Sabe-se que o devedor deverá responder pelos prejuízos decorrentes de tal inadimplemento ou rompimento. Todavia, questiona-se se o terceiro também poderá ser acionado pela ocorrência da infração contratual, mesmo não tendo sido parte no contrato.

Eis a situação: “A” e “B” possuíam relação contratual sob a qual vigia o dever de exclusividade que cabia a “B” (devedor da exclusividade). Surge, então, “C” (um terceiro a esse contrato) que vem a contratar com o devedor “B”, ciente de que o novo contrato irá necessariamente propiciar o inadimplemento da cláusula de exclusividade por parte de “B”.

 

Em princípio, sendo somente o “B” o devedor da exclusividade, o terceiro “C” não poderia responder judicialmente pela ocorrência do inadimplemento. Todavia, alguns reverenciados estudiosos do Direito e parte dos Tribunais vêm afirmando que o terceiro não pode se portar como se o contrato alheio não existisse e, dessa forma, não poderia firmar pacto que necessariamente dê causa ao inadimplemento daquele anterior ao seu, ciente de tal circunstância, sob pena de responder judicialmente pelos danos que eventualmente propiciar ao credor.

 

Um dos responsáveis por reavivar a discussão sobre o assunto no Brasil é o autor Antônio Junqueira de Azevedo [1] que analisa a possibilidade de responsabilizar o terceiro por aliciar o devedor a inadimplir determinada obrigação contratual, sob o prisma do princípio da função social do contrato. Aludindo à doutrina francesa do tiers complice e a tortious inteference do Direito inglês [2]defende que o contrato é oponível em relação a terceiros, no sentido de que todos devem respeitá-lo, não podendo ser visto como algo que interessa somente às partes que o firmaram. Assim, entende que aquele que contrata com alguém sabendo que obrigatoriamente irá causar o inadimplemento de um contrato anterior deverá responder (juntamente ou não com o devedor) pelos danos causados ao credor prejudicado, pois, do contrário, sairão favorecidos os menos escrupulosos.

 

O tema já chegou a ser discutido nos Tribunais. Em meados do ano passado (2014), tanto o Tribunal de Justiça de São Paulo quanto o Superior Tribunal de Justiça entenderam por condenar terceiro alheio à relação contratual por induzir e aliciar o devedor a inadimplir cláusula contratual de exclusividade.

 

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio do Desembargador Francisco Loureiro, afirmou que se “o terceiro, ainda que não seja parte no contrato, pode nele interferir de modo lesivo e ser responsabilizado por culpa extracontratual” e que, conforme a doutrina, “impõe[-se] ao terceiro uma obrigatoriedade de não violar obrigação contratual alheia que seja ou deva ser de seu conhecimento” [3].

 

No mesmo sentido, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino da Corte Superior de Justiça no julgamento do recurso especial de n. 1.316.149/SP ressaltou que “sob a perspectiva do princípio da boa-fé objetiva, positivado no Código Civil de 2002 (artigos 113, 187 e 422), dele extraindo-se um dever geral imposto a toda a coletividade de manter uma postura ética, respeitando a relação contratual estabelecida entre dois contratantes. O violador desse dever tem sido denominado ‘terceiro ofensor’ pela doutrina” [4].

 

Tais decisões justificam não só adoção de maior cuidado em futuras contratações de novos parceiros de negócios, mas também indicam a possibilidade de adoção das medidas judiciais contra eventuais “terceiros ofensores” que venham a interferir na relação contratual, seja por meio de tutela indenizatória (reparação pelos danos), seja por meio de tutela inibitória (que visa a evitar o ilícito ou a sua repetição) e seja por meio de tutela de remoção do ilícito (que visa remover os efeitos de uma prática ilícita que já ocorreu).

 

[1] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. In: _____. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 137-147.

_____. Diferenças de natureza e efeitos entre o negócio jurídico a termo inicial. A colaboração de terceiro para o inadimplemento de obrigação contratual. A doutrina do terceiro cúmplice. A eficácia externa das obrigações. In: _____. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 208-225.

[2] “Lumley, empresário teatral, contratara uma famosa cantora de ópera, Johana Wagner. Gye, um seu concorrente, consegue induzi-la a trabalhar por sua conta, quebrando o contrato com Lumley. Este obtém do tribunal numa injunction, ordenando à cantora que cessasse a actividade faltosa: mas nada consegue, por ela se recusar. A única solução demover o próprio Gye, pedindo-lhe contras pela quebra do vínculo obrigacional Lumley-Wagner. Ao que o tribunal acedeu, aplicando o espírito do Statute, velho de quinhentos anos. Da decisão do caso Lumley v. Gye derivaria a action for inducing breach of contract, que consagraria, definitivamente, no Direito Inglês, a doutrina do terceiro cúmplice” (Diferenças de natureza e efeitos entre o negócio jurídico a termo inicial. A colaboração de terceiro para o inadimplemento de obrigação contratual. A doutrina do terceiro cúmplice. A eficácia externa das obrigações. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 217-218).

[3] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível de n. 9000097-52.2011.8.26.0100, que tramitou perante a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Julgado em 17 de julho de 2014. Trecho do voto do desembargador relator Francisco Loureiro.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial de n. 1.316.149/SP, que tramitou perante a Terceira Turma. Julgado em 3 de junho de 2014. Trecho do voto Min. Rel. Paulo de Tarso Sanseverino.