A portaria 802 da extinta secretaria de vigilância sanitária e a inércia regulatória no Brasil

O artigo 6º da Constituição Federal assegura a saúde, dentre outros aspectos igualmente relevantes, como um direito social. Nesse contexto,

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O artigo 6º da Constituição Federal assegura a saúde, dentre outros aspectos igualmente relevantes, como um direito social. Nesse contexto, os produtos farmacêuticos ocupam lugar de especial importância nas estruturas que mantêm a saúde como um valor a ser protegido no Brasil. Da mesma forma, a atuação dos distribuidores no mercado mostra-se imprescindível para que tais produtos rumem das indústrias até os varejistas, atingindo, a partir destes, enfim, o consumidor.

 

Segundo entendimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA –, o distribuidor é aquele que exerce “direta ou indiretamente o comércio atacadista” dos produtos submetidos à vigilância sanitária [1].

 

A distribuição de produtos farmacêuticos no Brasil, por sua vez, tem diretrizes normativas elaboradas por entes da Administração Pública especialmente destinados à fiscalização e à regulação sanitária. Nesse contexto, as chamadas “boas práticas de distribuição” encontram-se atualmente definidas pela Portaria 802/1998, elaborada pela já extinta Secretaria de Vigilância Sanitária – SVS.

 

Dentre as amplas disposições normativas contidas na referida portaria, destaca-se o conteúdo previsto pelo art. 12, em especial por seus incisos II e III. Segundo o texto legal em comento, as distribuidoras somente podem adquirir produtos farmacêuticos de estabelecimentos detentores de seus respectivos registros [2]. Da mesma forma, somente podem vender tais produtos para estabelecimentos autorizados a dispensá-los [3], compreendida a dispensação como o fornecimento (a título remunerado ou não) para o consumo [4].

 

Em outras palavras, sendo os distribuidores meros comerciantes, tem-se claro que os mesmos não podem deter, nessa condição, a titularidade de registros de produtos farmacêuticos. Da mesma forma, por sua natureza atacadista, não detêm a competência para dispensá-los ao consumo humano. A conclusão extraída desse sistema estruturado pela Portaria 802 impede, portanto, que distribuidoras comercializem produtos farmacêuticos junto a outras distribuidoras.

 

Embora se possa admitir que os entes reguladores sanitários eventualmente disponham acerca de questões atinentes à comercialização de produtos farmacêuticos, a Portaria 802 merece questionamento à luz das diretrizes constitucionais: podem as mencionadas limitações coexistir com as constitucionalmente asseguradas liberdades de iniciativa [5] e de concorrência [6]?

 

Ademais, outra questão merecedora de reflexão é a possível defasagem da Portaria 802 no tempo, especialmente após a sucessão da SVS pela ANVISA.

 

A constituição da ANVISA implicou automática extinção da SVS [7]. Substituiu-se, então, um órgão integrante do Ministério da Saúde [8] por uma autarquia sob regime especial na forma de agência reguladora [9], tal qual implementado em diversos outros setores da regulação estatal.

 

Obviamente, estruturar um ente fiscalizador e regulador dotado de maior autonomia – incomparavelmente a um mero órgão – implica, também, atribuir-lhe um dever de atuação mais incisiva em suas respectivas funções.

 

A Portaria 802, conforme seu próprio preâmbulo, foi elaborada com base nas prerrogativas e atribuições dispostas pelas Leis 5.991/73 e 6.360/76 e por seus respectivos decretos regulamentadores.

 

Ocorre que, em 1998, ano de edição da portaria em comento, a Lei 5.991/73 já havia sido substancialmente alterada pela Lei 9.069/95. Seu decreto regulamentador (74.170/74), contudo, sofreu pouquíssimas alterações desde então.

 

A Lei 6.360/76, embora haja sofrido alterações menores ao longo do tempo, encontrava-se regulamentada, em 1998, pelo já antigo Decreto 79.094/77. Em 14.08.2013, passou a vigorar o Decreto 8.077/2013, que substituiu seu predecessor para fins de regulamentação da Lei 6.360/76.

 

Enquanto o Decreto 79.094/77 continha vastos 171 artigos, seu sucessor contém apenas 26. Além da substancial diferença numérica, ambos também se distinguem em conteúdo. Editado quase 15 anos após a criação da ANVISA, o Decreto 8.077/13 atribui à agência uma série de discricionariedades que, no contexto em análise, evidenciam a maior responsabilidade regulatória da mesma.

 

Ainda assim, dotada de uma estrutura autônoma e descentralizada em relação à sua função na Administração Pública, bem como de poderes muitíssimo mais amplos em relação à SVS, a ANVISA até o presente – decorrido quase um ano da publicação do Decreto 8.077/13 – jamais se dedicou a elaborar norma reguladora da distribuição de produtos farmacêuticos.

 

Mantendo a defasada portaria em vigor (e aplicando-a inclusive para fins de autuar infrações cometidas contra suas disposições), a ANVISA deixa de exercer a atuação que se esperaria de uma agência reguladora, criada para o fim de promover a proteção da saúde mediante critérios de especialidade e planejamento técnicos. Tais critérios, diga-se, somente são viabilizados pela autonomia decorrente de sua condição de autarquia em regime especial.

 

Deve-se considerar, ainda, que as indústrias farmacêuticas, para escoar seus produtos no mercado, utilizam-se de estabelecimentos distribuidores geralmente específicos, a fim de bem delinear seus canais de venda.

 

Assim, essa inércia da ANVISA no exercício de suas atribuições normativas impede, por exemplo, que distribuidores situados em regiões desprovidas de indústrias farmacêuticas – estas notoriamente concentradas no sudeste do País – abasteçam-se junto a outras distribuidoras situadas em locais mais próximos dos fabricantes.

 

Ao que se constata, a manutenção de sistemas normativos arcaicos, oriundos de período anterior à criação das agências reguladoras, além de ensejar dúvidas sobre a própria necessidade de criação destas, estagna o ordenamento jurídico – quiçá social e político – em padrões ultrapassados e incondizentes com a realidade atual e com a extensão territorial do País.

 

Diante do exposto, verifica-se imprescindível que as agências reguladoras exerçam de maneira incisiva suas atribuições institucionais. Além de promover progressos e melhorias nos aparatos que regem os âmbitos regulados País, a atuação dinâmica dessas instituições possibilita uma adaptação mais célere das normas vigentes ao contexto tecnológico e social, cujos parâmetros modificam-se velozmente, ainda mais se comparados aos longos processos legislativos pátrios.

 

[1] < http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/conceito.htm#1.15 > Acesso em 28.07.2014, às 12:17.
[2] BRASIL. Secretaria de Vigilância Sanitária. Portaria 802, de 08 de outubro de 1998. Art. 12 A empresa autorizada como distribuidora tem o dever de: [...] II - abastecer-se em empresas titulares do registro dos produtos.
[3] BRASIL. Secretaria de Vigilância Sanitária. Portaria 802, de 08 de outubro de 1998. Art. 12 [...] III - fornecer produtos farmacêuticos apenas a empresas autorizadas/ licenciadas a dispensar estes produtos no País.
[4] < http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/conceito.htm#1.15 > Acesso em 28.07.2014, às 12:17.
[5] BRASIL. Constituição Federal. Art. 5º, V.
[6] BRASIL. Constituição Federal. Art. 170, IV.
[7] BRASIL. Lei 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Art. 30. Constituída a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, com a publicação de seu regimento interno pela Diretoria Colegiada, ficará a Autarquia, automaticamente, investida no exercício de suas atribuições, e extinta a Secretaria de Vigilância Sanitária.
[8] BRASIL. Decreto 79.056, de 30 de dezembro de 1976. Art. 3º, alínea “e”, item 1.
[9] BRASIL. Lei 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Art. 3o Fica criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro no Distrito Federal, prazo de duração indeterminado e atuação em todo território nacional.