A retificação do quadro-geral de credores após a homologação do plano de recuperação judicial

O primeiro semestre de 2015 foi marcado, dentre outros indicadores da situação econômica do país, pelo número recorde em pedidos

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O primeiro semestre de 2015 foi marcado, dentre outros indicadores da situação econômica do país, pelo número recorde em pedidos de recuperação desde a entrada em vigor da Lei de Recuperação Judicial e Falências – LRJF –[1], em junho de 2005. Somente nesses primeiros seis meses do ano, foram registrados 492 casos pela Serasa Experian [2].

 

A recuperação judicial, em um breve resumo, consiste numa espécie de benefício legal que pode ser utilizado pela sociedade empresária que se vê incapacitada de pagar suas dívidas. Entende-se possível dividir a ação de recuperação em dois momentos distintos e paralelos. Pretende-se tratar, aqui, da fase de verificação e habilitação de créditos e da fase de apresentação e deliberação do plano.

 

O plano de recuperação, essencialmente, consiste na sistemática de gestão e negócio adotada pela sociedade empresária, somada à proposta de pagamento dos créditos apurados previamente. Justamente aos detentores desses créditos, incumbe a tarefa de aprovar ou rejeitar o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor. Nota-se, portanto, que a definição do rol de credores guarda direta relação com a posterior análise do plano de recuperação proposto pela devedora [3].

 

A apuração dos créditos submetidos aos efeitos da recuperação judicial – e, consequentemente, dos credores que devem deliberar sobre o plano – tem início no quadro-geral de credores provisoriamente apresentado pela própria sociedade empresária por ocasião do ajuizamento da respectiva ação. Nesse sentido, dentre outras exigências, o art. 51, III, da LRJF, impõe como requisito à petição inicial da demanda a apresentação da “relação nominal completa dos credores”, devendo indicar, ainda, “a classificação e o valor atualizado do crédito”.

 

O caráter provisório dessa relação preliminarmente apresentada pela devedora evidencia-se pela expressa previsão da Lei acerca da atuação do administrador judicial, para fins de “verificação dos créditos” [4], pelo que deverá, ao final, fazer “publicar edital contendo a relação de credores” [5].

 

A segunda etapa, inerente à consolidação do quadro geral de credores, subdivide-se em duas possibilidades: habilitação e divergência.

A habilitação tem por escopo incluir, na relação apresentada pelo devedor, crédito que, injustificadamente, não tenha sido arrolado. A divergência, por outro lado, visa a questionar a classe em que fora classificado o crédito ou o quantum que lhe foi atribuído. Oportunizada a apresentação de habilitações ou divergências, o administrador judicial apresenta o rol de créditos e credores apurados, com suas respectivas ordens de classificação – previstas pelo artigo 83 da LRJF – ao juízo.

 

A partir de então, consolida-se o que se poderia chamar de segunda versão do quadro geral (relação) de credores, estabelecida a partir dos controles iniciais da recuperanda e adequada à luz das manifestações de eventuais credores habilitantes ou divergentes.

 

Ato contínuo, faculta-se a certos legitimados impugnar a relação de credores [6]. Para tanto, prevê o artigo 8º da LRJF que, no prazo de 10 dias, contado da publicação da relação acima citada, o Comitê, qualquer credor, o devedor ou seus sócios, ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz manifestação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou insurgindo-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado [7].

 

O próprio artigo 8º supramencionado encarrega-se, em seu parágrafo único, de definir o trâmite da impugnação, que deve ser autuada em separado. Em outras palavras, o trâmite desse verdadeiro incidente dá-se de maneira autônoma, em paralelo ao processamento da recuperação judicial.

 

Dessa forma, ainda que se possa compreender como processualmente mais saudável a resolução prévia de todas as impugnações, é possível que, quando da realização da Assembleia Geral de Credores – AGC – [8], algumas dessas se encontrem pendentes de julgamento.

 

Nesse contexto, como dispõe o art. 35, I, “a”, da LRJF [9], uma das atribuições da AGC é justamente aprovar (bem como rejeitar ou modificar) o plano de recuperação apresentado pelo devedor. Resta possível, portanto, que o plano seja aprovado mediante a eventualidade de, nas impugnações pendentes de julgamento, alterar-se o contexto de deliberação, tanto pela possível alteração de valores atribuídos a determinados créditos quanto pela eventual exclusão de credores reconhecidos como extraconcursais.

 

Com efeito, o chamado princípio tempus regit actum regula as condições inerentes à deliberação. Assim, mesmo na hipótese de determinado credor ter apresentado impugnação insurgindo-se contra o crédito atribuído ou à sua classificação, é importante salientar que, uma vez constando na relação de credores, é imperiosa a sua votação acerca do plano nas exatas condições em que está inserido (crédito e classe) no momento da realização da assembleia.

 

Registra-se, nesse sentido, que mesmo na hipótese de, posteriormente à AGC, julgar-se procedente a impugnação, o plano e o quadro geral de credores poderão ser retificados, ainda que já homologados.

 

Acerca do tema, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente julgamento de relatoria do Ministro Villas Bôas Cueva, definiu que é possível a retificação do quadro-geral de credores após a homologação do plano de recuperação judicial.

 

Nos dizeres do Julgador, “tal circunstância coaduna-se com a sistemática prevista na Lei de Recuperação Judicial, pois as questões passíveis de serem objeto de impugnação judicial contra a relação de credores, que são expressamente previstas no art. 8º da Lei nº 11.101/2005, somente se estabilizam ou, na expressão da lei, consolidam-se após o julgamento do citado instrumento processual (art. 18 da Lei nº 11. 101/2005), de modo que se admite a retificação do quadro geral de credores no tocante à ausência, legitimidade, importância ou classificação de crédito, mesmo após a aprovação do plano de recuperação judicial”[10].

 

A decisão do Superior Tribunal de Justiça, portanto, revela um posicionamento adequado diante do procedimento previsto na lei, ao mesmo tempo em que assegura a utilidade das impugnações em plena conformidade com o fim que lhes é atribuído pelo Direito pátrio.

Dessa forma, entende-se que, mesmo após a aprovação do plano – o que sugere uma relação de credores minimamente consolidada –, é plenamente possível que os efeitos decorrentes de impugnações julgadas posteriormente sejam aplicados para fins de retificação do quadro-geral de credores, ainda que, obviamente, não seja essa a ordem de trâmite melhor adequada à solução da demanda recuperacional.

 

[1] BRASIL. Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.

[2] Disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/07/pedidos-de-recuperacao-judicial-batem-recorde-em-9-anos.html. Acesso em: 08.10.2015, às 17:52.
[3] CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: O novo regime da insolvência empresarial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122.
[4] Art. 7º A verificação dos créditos será realizada pelo administrador judicial, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do devedor e nos documentos que lhe forem apresentados pelos credores, podendo contar com o auxílio de profissionais ou empresas especializadas. BRASIL. Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.
[5] Art. 7º [...] §2o O administrador judicial, com base nas informações e documentos colhidos na forma do caput e do § 1o deste artigo, fará publicar edital contendo a relação de credores no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, contado do fim do prazo do § 1o deste artigo, devendo indicar o local, o horário e o prazo comum em que as pessoas indicadas no art. 8o desta Lei terão acesso aos documentos que fundamentaram a elaboração dessa relação. BRASIL. Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.
[6] “Conquanto a habilitação de crédito tenha feição administrativa, a impugnação cerca-se de manifesta natureza contenciosa, exigindo, outrossim, atividade jurisdicional. ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a Lei n. 11.101/2005. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 241.
[7] CAMPOS FILHO, Moacyr Lobato de. Falência e recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 55.
[8] “A lei inova na criação da Assembleia Geral de Credores, responsável por acompanhar todo o processo de recuperação da empresa, sendo competente para deliberar sobre o plano de recuperação judicial, a proposta de recuperação extrajudicial e qualquer incidente que possa ocorrer durante o procedimento de falência previsto nela”. OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Direito falimentar e recuperação judicial de empresas: nova lei de falências e de recuperação de empresas: Doutrina, prática processual, legislação, jurisprudência e súmulas. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2005, p. 24.
[9] Art. 35. A assembleia-geral de credores terá por atribuições deliberar sobre:I – na recuperação judicial: a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor [...]. BRASIL. Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.
[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1371427. Terceira Turma. Ministro Relator Ministro Villas Bôas Cueva. Julgado em 06.08.2015.