A multidisciplinaridade de diversos temas inerentes à Administração Pública – decorrente das cada vez mais rápidas modificações sociais e jurídicas – não raras vezes culmina na atuação conjunta de órgãos e entes públicos reguladores. Todavia, esse compartilhamento de um mesmo objetivo por vezes resulta na confusão dos agentes reguladores acerca de suas próprias funções e competências.
Um exemplo claro de atuação conjunta de autarquias federais é a chamada “prévia anuência” da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – na concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos, prevista no art. 229-C da Lei 9.279/96 – Lei da Propriedade Industrial (LPI) – chamando a agência reguladora ao cumprimento de importante papel técnico no âmbito farmacêutico em auxílio à atuação do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI.
Ocorre que a ANVISA, por sua vez, dispõe sobre o procedimento da prévia anuência na Resolução da Diretoria Colegiada – RDC – nº 45/2008. Para tanto, o art. 4º da RDC prevê que a análise da agência reguladora dar-se-á pela aferição do preenchimento de “requisitos de patenteabilidade”, além de outros critérios previstos em lei. A concessão da prévia anuência, segundo o mesmo texto normativo, depende ainda de elaboração de parecer técnico emitido pela unidade competente na estrutura organizacional da ANVISA.
Ou seja, passa-se a ter a situação sui generis de haver duas autarquias federais – ANVISA e INPI – aferindo, na prática, requisitos de patenteabilidade de um determinado produto ou processo, correndo-se o risco de gerar a paradoxal situação de existirem duas posições distintas acerca de um mesmo pedido. O referido paradoxo pode ser exemplificado pelos casos de pedidos de patentes de polimorfos medicamentosos, nos quais INPI e ANVISA emitem, respectivamente, parecer técnico favorável e contrário.
O problema é que, ao atribuir a si própria o dever de analisar requisitos de patenteabilidade, ainda que demonstrando notável zelo, a ANVISA extrapola suas próprias competências e sua finalidade institucional claramente prevista pelo art. 6º da Lei 9.782, de 26 de janeiro de 1999. O aludido texto legal atribui à agência, além do objetivo de “promover a proteção da saúde”, os meios pelos quais se pretende pautar sua atuação: o controle sanitário da produção e da comercialização de determinados produtos e serviços.
Ainda que vinculado à prévia anuência da ANVISA, o responsável pela concessão da patente, a partir da análise de requisitos alheios à técnica farmacológica, é o INPI, conforme disposto reiteradamente pela LPI. Da mesma forma, a Lei 5.648, de 11 de dezembro de 1970, atribui ao INPI a finalidade institucional de executar as normas que regulam a propriedade industrial.
Diante disso, considerando-se ainda que os requisitos de patenteabilidade encontram-se listados pelo art. 8º da Lei 9.279, verifica-se que o art. 4º da RDC nº 45/2008 não se limita a extrapolar as competências institucionais da ANVISA: a análise de tais requisitos representa, ainda, intromissão nas competências do INPI.
Os Tribunais brasileiros – e a anuência prévia à concessão de patente é de fato um procedimento sem precedentes no âmbito internacional – já firmaram posição acerca de tal prática da Agência Sanitária. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que abrange o território da capital federal, sede da ANVISA, exemplifica esse posicionamento no sentido de que a ANVISA, “ao avaliar a patenteabilidade [...], exorbitou da finalidade institucional e atribuições que lhe foram cometidas pela Lei nº 9.782/99”[1].
As Agências Reguladoras surgiram no Brasil a partir do cenário de privatizações e concessões instaurado na chamada “Reforma Administrativa” da segunda metade da década de 90, por vezes substituindo órgãos e entes da administração direta que exerciam funções idênticas ou semelhantes.Exemplo claro é a extinta Secretaria de Vigilância Sanitária, sucedida pela ANVISA nos termos previstos pelo art. 30 da Lei 9.782/99.
A constituição dessas agências, no contexto de descentralização da Administração Pública, “foi consequência da crescente complexidade das tarefas administrativas e das exigências de maior especialização, que ditaram sua progressiva expansão, a partir de conceitos de personificação administrativa”[2]. Revela-se, assim, o zelo dedicado pelo sistema político brasileiro ao grau de especialização dos entes públicos destinados à regulação de determinados temas.
Diante do exposto, constata-se que a atuação da ANVISA em caráter exorbitante de sua finalidade institucional, mediante apreciação de questões referentes aos requisitos de patenteabilidade de produtos, implicaria resultados tecnicamente precários, uma vez que dissociados da estrutura e da finalidade que lhe são conferidas por sua lei instituidora.
Conclui-se, portanto, que a estrita observância dos limites da competência que lhe é conferida pela lei constitui preceito básico que ultrapassa a mera efetividade da atuação autárquica. Trata-se, também, de requisito básico a justificar a criação, na forma de autarquia – e, portanto, no contexto descentralizado de Administração Pública –, de todo e qualquer ente regulador, garantindo aos regulados qualidade técnica planejada e segurança jurídica em termos formalmente suficientes.
[1] BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento n. 0032743-44.2013.4.01.0000 (DF). Agravante: Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Agravada: Merck Shapp & Dohme Corp. Relatora: Desembargadora Selene Maria de Almeida. Brasília, 13 de dezembro de 2013.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 14 ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 253.