Os dilemas enfrentados pelo descompasso entre os burocráticos procedimentos inerentes ao processo legislativo e as cada vez mais rápidas modificações sociais e tecnológicas já não são novidade no Brasil. A Administração Pública, especialmente na chamada “reforma administrativa” promovida ao final da década de noventa, estrutura-se a partir de órgãos e entidades cuja especialização em determinados temas é cada vez mais minuciosa. Assim, a celeridade demandada por determinadas evoluções sociais e tecnológicas movimenta estruturas menores, deixando ao ente governamental central atribuições menos técnicas e mais voltadas à gestão.
Esse mesmo panorama, avaliado no âmbito da separação de poderes, reserva ao Poder Legislativo uma atuação que, de maneira crescente, aproxima-se da mera formalidade, necessária em razão do vigente princípio constitucional da legalidade, mas que deixa aos demais Poderes a função de efetivamente dispor sobre normas a regrar o Direito. Em outras palavras, o Legislativo desincumbe-se de sua função material de representar a vontade do povo e passa a cumprir tarefas de cunho eminentemente burocrático. O chamado Marco Civil da Internet – Lei 12.965/2014 – representa um claro e atual exemplo desse contexto.
Comemorado pela iniciativa estatal de regulamentar um ambiente historicamente novo – a internet –, o Marco Civil apresenta diversas pretensões que, mesmo estabelecidas na forma de lei, carecem de suporte legal para produzir efeitos práticos.
O art. 3º da Lei indica, em seus incisos, um total de oito princípios norteadores da disciplina da internet no Brasil. Contudo, alguns conceitos carecem de definição, como é o exemplo da “proteção aos dados pessoais, na forma da lei” assegurada, em tese, pelo inciso III. Todavia, o conceito de “dados pessoais” não se encontra no rol de definições do art. 5º do mesmo diploma.
Da mesma forma, não raras são as disposições da Lei que relegam para momento posterior a definição prática de seus efeitos. São as imprecisões dispositivas que ensejam, por determinação expressa, regulamentação posterior por Decreto do Presidente da República ou, eventualmente, atos normativos da agência reguladora atuantes sobre o mercado de telecomunicações.
Importa manter-se em mente que os primordiais modelos de separação das funções estatais – elaborados por John Locke e pelo Barão de Montesquieu, sem perder de vista o esboço aristotélico anterior – tiveram por objetivo eliminar ou reduzir as possibilidades de autoritarismo por parte do governante nos modelos prévios às revoluções, em especial o absolutismo francês.
Em que pese a necessidade de atuação célere do Estado, reconhecendo-se que a tomada de decisões – elaboração de textos normativos – por um único homem é efetivamente mais rápida, tais circunstâncias merecem análise sob prisma global no sistema político instituído no Brasil.
A redução da relevância prática dos atos do Legislativo, que redundam em um empoderamento cada vez maior do Executivo – do qual aquele se torna dependente –, não deixa de representar a retomada de um rumo inverso ao sentido essencial da divisão de Poderes. Não se pode, em razão da pressa em fazer a lei acompanhar a sociedade e a tecnologia, deixar de considerar que o processo legislativo, uma vez vigente, tem suas razões de ser. Não parece ser medida recomendável permitir que a celeridade, por si só, reestruture o modelo político em detrimento das garantias materiais que se espera do processo legislativo.
Centralizar a incumbência de elaborar dispositivos destinados ao regramento da vida em geral – ou, como refere Montesquieu [1], o regramento sob cuja égide será regido o Direito – no Poder Executivo, ainda que justificado teoricamente na celeridade legislativa, significa impor à sociedade uma reflexão profunda. Mais do que isso, uma análise crítica e histórica acerca dos marcos referenciais que justificaram a idealização do modelo político vigente no Brasil, tripartite, em especial no contexto da civil law, erigido fundamentalmente sobre o princípio da legalidade.
[1] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996 p. 167. Tradução de Cristina Murachco.