Os efeitos da novação obrigacional decorrente da homologação do plano de recuperação judicial

A lei 11.101/05 (Lei de Falências e Recuperações Judiciais – LFRJ), que substituiu a antiga Lei de Concordatas, conferiu às sociedades

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A lei 11.101/05 (Lei de Falências e Recuperações Judiciais – LFRJ), que substituiu a antiga Lei de Concordatas, conferiu às sociedades empresárias em dificuldades financeiras a possibilidade de requererem judicialmente a flexibilização de suas obrigações. Tal instituto tem como finalidade a recuperação da atividade empresarial, exigindo, para tanto, o cumprimento de alguns requisitos legalmente previstos.

 

O rito da recuperação judicial contempla, para o que ora interessa, três momentos de destaque: o deferimento do pedido de recuperação judicial, a apresentação de impugnações, divergências e habilitações e, finalmente, a homologação do plano de recuperação. A homologação do plano, por sua vez, produz peculiar efeito, justamente o que ora se pretende analisar: a novação dos créditos anteriores ao pedido.

 

O instituto da novação encontra-se previsto pelo art. 360 do Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Compreende-se a novação, a partir das hipóteses elencadas pelo mencionado dispositivo legal, como uma “modalidade de extinção de uma obrigação em virtude da constituição de uma obrigação nova que vem ocupar o lugar da primeira” [1]. Nessa sistemática, “embora não tenha recebido a primeira prestação que lhe era devida, o credor aceita que ela seja considerada extinta, porque só poderá exigir o adimplemento da obrigação que a substitui” [2].

 

No âmbito cível, portanto, verifica-se um claro estabelecimento de duas obrigações distintas, sendo uma estabelecida para fins de extinção da outra. Da mesma forma, perecem, salvo se igualmente renovadas, as obrigações acessórias àquela novada. O Código Civil pátrio contempla de maneira objetiva a completa dissociação dos devedores solidários que não participarem da novação, conforme disposição expressa do artigo 365 [3]. Da mesma forma, o subsequente artigo 366 assegura a exoneração do fiador quando a novação for procedida sem seu consenso [4].

 

A LFRJ não abre margem para dúvidas ao impor a novação como efeito da recuperação concedida. Diferentemente da compreensão no âmbito cível, contudo, a novação na esfera da LFRJ contempla interpretação no sentido de que a “recuperação judicial não afeta os direitos creditórios detidos em face de coobrigados, fiadores e obrigados de regresso em geral, podendo o respectivo titular exercê-los em sua plenitude [...]” [5]. Justamente nesse sentido, o art. 49, § 1º, da LFRJ assegura aos credores a conservação de seus direitos [6].

 

A distinção do tratamento conferido pelos diplomas legais em comento é devidamente alertada por Ricardo Negrão, ao referir que “há, contudo, uma dificuldade a ser sanada quando se confrontam os arts. 59 e 49, § 1º, da Lei de Recuperação Judicial e os arts. 364 a 366 do Código Civil” [7]. O mesmo autor ainda constata que “no Código Civil a novação opera a liberação das garantias e bens oferecidos pelo devedor e, ainda, das garantias pessoais [...]. Na recuperação, mesmo com a novação, as garantias reais e pessoais persistem” [8].

 

A questão interpretativa do conceito de novação foi tema de repercussão geral no Superior Tribunal de Justiça – STJ – em 2015. Os Ministros, naquela ocasião, manifestaram-se no sentido de que a “recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005” [9].

 

Se, de um lado, a jurisprudência do STJ mostra-se consolidada no sentido de aplicar irrestritamente a LFRJ no que diz respeito à novação, de outro, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sugere certa relativização. O desembargador Carlos Abrão, integrante da 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo registrou em decisão proferida que “a doutrina está dividida em relação à matéria e também não há consenso jurisprudencial, isto porque, muito antes de se definir a continuidade da ação contra os garantes solidários, é fundamental questionar sobre o salvamento da empresa” [10].

 

Em trecho diverso, o mesmo julgador pondera que “não faria sentido, ao menos dentro do espírito da recuperação, se dirigir contra o patrimônio dos sócios, exceto e somente se estiver comprovado que o credor não está inserido no plano ou que a forma e o método de pagamento não foram satisfeitos”.

 

Ainda que o referido processo encontre-se no Superior Tribunal de Justiça, com seu tema afetado pelos Recursos Repetitivos, e no aguardo pela apreciação dos Ministros, a doutrina também contempla interpretações distintas sobre o tema. A exemplificar a multiplicidade de interpretações oferecidas pela doutrina, Ricardo Negrão afirma que “os credores somente conservam seus direitos e privilégios até a concessão da recuperação judicial. A partir daí, com a novação – efeito da concessão – incide o art. 366 do Código Civil, ficando o fiador exonerado” [11].

 

A adoção, com significados distintos, de um mesmo termo – novação – abre margem para amplas possibilidades interpretativas, às quais a doutrina e a jurisprudência oferecem certa orientação. Ainda assim, observado o momento atual do país – em que, cada vez mais, exigem-se atos regulamentares para efetiva aplicação da lei –, constata-se, também neste exemplo, outro traço de uma legislação cada vez menos efetiva.

 

[1] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do direito das obrigações, vol. V, t. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 562.
[2] PELUZZO, Cezar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador: Cezar Peluzzo. 3. ed. rev. atual. Barueri, SP: Manole, 2009, p. 250.
[3] “Art. 365. Operada a novação entre o credor e um dos devedores solidários, somente sobre os bens do que contrair a nova obrigação subsistem as preferências e garantias do crédito novado. Os outros devedores solidários ficam por esse fato exonerados”. BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[4] “Art. 366. Importa exoneração do fiador a novação feita sem seu consenso com o devedor principal”. BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
[5] CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: O novo regime de insolvência empresarial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 144.
[6] “Art. 49 [...] § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”. BRASIL. Lei 11.101 de 09 de fevereiro de 2005.
[7] NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. vol. 3. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 186.
[8] NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. vol. 3. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 186.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1333349/SP, Rel. Ministro LUIS Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 26.11.2014, DJe 02.02.2015.
[10] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 2052205-84.2014.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Abrão, Décima Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgado 07.04.2014, DJe 08.04.2014.
[11] NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. vol. 3. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 187.