A crise no sistema de saúde pública no Brasil não é recente, e foi agravada pela pandemia causada pelo COVID-19. Se antes a infraestrutura do sistema já era deficiente, a pandemia agravou o problema da falta de leitos, materiais, equipamentos e etc.
Para mitigar essa situação, uma das medidas autorizadas pela Lei nº 13.979/2020 foi a requisição, pelas autoridades, de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas (artigo 3º, VII).
Outros textos normativos já autorizavam o poder público a realizar requerimentos administrativos de bens privados em caso de “eminente perigo público”, como previsto na Constituição Federal, ou “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias”, como previsto na Lei nº 8.080/1990.
Embora a disposição normativa que possibilita a requisição administrativa de bens não seja, como visto acima, uma novidade, a medida prevista na Lei nº 13.979/2020 está causando grande instabilidade no setor privado, podendo tornar inoperantes alguns hospitais privados no combate à pandemia.
A instabilidade decorre da falta de regulação específica e estabelecimento de requisitos mínimos para adoção das medidas facultadas pela Lei nº 13.979/2020, inclusive em relação aos legitimados, uma vez que a lei autoriza os “gestores locais de saúde” à requisição de bens e serviços.
Por conta disso, na última semana alguns hospitais privados passaram a enfrentar situações inusitadas. Uma delas ocorreu em um hospital localizado na cidade de São Roque, interior de São Paulo. O prefeito da cidade expediu Decreto Municipal declarando estado de calamidade pública e determinando a requisição administrativa dos equipamentos de UTI de um hospital local. O nosocômio impetrou mandado de segurança pleiteando a devolução imediata dos bens. O pedido liminar, contudo, foi indeferido.
Outro caso inusitado ocorreu em Cotia, interior de São Paulo, onde o vice-prefeito fez uso da força policial para se apropriar de 35 respiradores de uma empresa, contra a qual a municipalidade havia obtido decisão favorável para compra dos equipamentos.
Situações semelhantes têm ocorrido em diversos Estados, causando instabilidade nos hospitais privados. Se é certo que as medidas editadas pela Lei nº 13.979/2020 visam o enfrentamento da emergência na área da saúde, não se pode perder de vista que, conforme disposto na própria lei (§1º, do artigo 1º), “as medidas objetivam a proteção da coletividade”, abarcada pelo setor público e privado.
O cenário atual deu margem ao ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), ADI 6.362, onde a entidade sustenta que “as redes pública e privada de saúde são igualmente responsáveis por assegurar o direito constitucional à saúde”, e “resolver o problema da escassez de equipamentos e leitos do setor público às custas do setor privado enfraquece de forma injustificada o já sobrecarregado setor de saúde”.
Na ADI, a entidade pede o imediato estabelecimento de uma ação coordenada, controlada e assentida pelo Ministério da Saúde no que diz respeito às medidas de requisição administrativa, bem como a imediata suspensão da eficácia dos atos de requisição administrativa realizados por gestores de saúde estaduais ou municipais que não foram submetidos ao prévio exame e autorização do Ministério da Saúde.
No mérito, a entidade requer “que o Supremo Tribunal Federal confira interpretação conforme à Constituição, para explicitar que as exigências constitucionais que cercam a ingerência pública sobre bens e serviços de particulares devem conduzir a que os atos de requisição sejam devidamente motivados, transluzindo a devida ponderação do interesse que os anima com os valores constitucionais da propriedade, livre iniciativa e mesmo da eficiência na proteção da saúde”.
O Ministro Relator Ricardo Lewandowski abriu vista à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria Geral da República, solicitando informações. A ADI seguirá o rito previsto no artigo 12 da Lei nº 9.868/1999, segundo o qual poderá haver julgamento imediato da ação quando houver pedido cautelar e a matéria for relevante e de especial significado para a ordem social e a segurança jurídica.
A Carpena Advogados acompanhará os desdobramentos da ADI 6.362, cuja decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.