Relações de consumo e Covid-19: uma exposição sobre as medidas adotadas

À exemplo do que ocorre com a COVID-19, pandemias influenciam não só a saúde das pessoas, como também os mercados. A pandemia,

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À exemplo do que ocorre com a COVID-19, pandemias influenciam não só a saúde das pessoas, como também os mercados. A pandemia, que trouxe impactos às cadeias de distribuições globais, às bolsas de valores, aos preços de produtos e de serviços (nacionais e importados), por decorrência lógica também interferiu nas relações de consumo.

 

No que toca a economia, em recente reunião virtual da Cúpula do G 20, realizada na quinta-feira, dia 26 de março, líderes mundiais comprometeram-se a injetar mais de 5 trilhões de dólares na economia global, além de expandir a capacidade industrial para atender a crescente demanda por suprimentos médicos, tudo para combater os impactos da COVID-19.[1]

 

Noutro prisma, como garantia do equilíbrio das relações consumeristas, o governo federal, em sintonia com as chefias dos executivos estaduais e municipais, também têm ativamente interferido nas relações de consumo.

 

Neste contexto, se por um lado a Carta Magna garante o exercício de liberdade negocial, conforme art. 170, caput, da Constituição Federal, por outro também admite limitações por conta da proteção do consumidor, conforme este mesmo artigo, em seu inciso V e no art. 5º, XXXII. É com este viés, de garantia do equilíbrio das relações entre fornecedor e consumidor, que as chefias dos executivos entenderam necessárias as seguintes medidas:

 

[1] https://nacoesunidas.org/uma-economia-global-sustentavel-precisa-surgir-apos-pandemia-diz-chefe-da-onu-ao-g20/

 

MP 925/2020: dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da COVID-19

 

Seja pelo fechamento das fronteiras, seja pelo receio do contágio, muitos consumidores tiveram que readequar suas viagens a nova conjuntura mundial.

 

Diante disso, o governo federal expediu a Medida Provisória 925/2020, válida por 60 (sessenta) dias, prorrogável uma única vez, por igual período, desde a data da sua publicação, em 19 de março de 2020.

 

A medida garante ao consumidor que adquiriu passagens aéreas até 31 de dezembro de 2020, o reembolso do preço integral, em até 12 (doze) meses, independentemente de multa contratual.

 

Ainda que a interpretação da medida dependa de sedimentação pela jurisprudência, ao que parece, aplica-se somente aos contratos firmados em data posterior a sua publicação, em 19 de março de 2020. Logo, via de regra, todos os contratos de transporte firmados anteriormente devem ter a devolução do dinheiro antecipado pelo consumidor imediatamente, sob pena de a companhia se sujeitar aos encargos moratórios.

 

Por evidência, os termos do diploma consumerista permanecem em vigor, deixando a critério do consumidor a opção pelo reembolso do valor integral, nos termos e no período de vigência da Medida Provisória, ou pela remarcação da viagem, ambas independentemente de multa.

 

MP 948/2020: Dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão da pandemia da COVID-19

 

Em virtude da pandemia, Estados e Municípios expediram inúmeros decretos para proibir a realização de eventos que envolvam a aglomeração de pessoas. Logo o cancelamento destes tornou-se inevitável.

 

Assim, tendo como destinatários os prestadores de serviços turísticos do art. 21 da Lei n. 11.771/2008 (hotéis, agências de turismo, transportadoras, parques temáticos, etc.), bem como cinemas, teatros, dentre outros, sobreveio a normativa para permitir o cancelamento de eventos, independentemente de reembolso.

 

Tal procedimento é permitido aos prestadores desde que assegurem ao consumidor: (i) a remarcação; (ii) o crédito para uso ou abatimento na compra de outros produtos/serviços disponíveis na empresa; (iii) ou ainda a possibilidade de acordo.

 

Importante destacar que cada uma destas opções guardam peculiaridades que devem ser observadas no momento da avença – à exemplo do preço e a sazonalidade em que foram adquiridos -, motivo pelo qual um acompanhamento caso a caso é imprescindível para que se garanta a validade da tratativa.

 

Ademais, a normativa permite ao consumidor a adoção destas medidas, sem qualquer custo adicional, desde que faça a solicitação no prazo de até 90 (noventa) dias, contado da data da entrada em vigor da Medida Provisória. Em outras palavras: em até 90 dias, a partir de 08 de abril de 2020, é permitido ao consumidor optar por uma das três alternativas chanceladas pela Medida Provisória, independentemente de custo adicional, caso contrário pode incorrer em taxas, multas ou outros encargos.

 

Por fim, na impossibilidade de ajuste que abarque quaisquer das hipóteses chanceladas pela normativa, o prestador de serviço, ou a sociedade empresária, deverá restituir o valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo IPCA-E – índice nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial -, no prazo de 12 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública decretada em virtude da COVID-19.

 

Resolução 453 da ANS: garante aos pacientes a cobertura de testes diagnósticos para detectar a infecção pela COVID-19 nos planos de seguro

 

A Resolução altera a Resolução Normativa - RN nº 428, de 07 de novembro de 2017, que dispõe sobre o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde no âmbito da Saúde Suplementar, para regulamentar a utilização de testes diagnósticos para infecção pelo Coronavírus, independentemente de cláusula contratual, ou de cláusula que expresse em contrário.

 

Logo, os testes diagnósticos de contaminação pela COVID-19 serão obrigatoriamente cobertos pelos planos de saúde aos pacientes que se enquadrarem na definição de caso suspeito ou provável de contaminação.

 

Importante frisar que o entendimento deve ser visto com ressalvas em relação aos contratos de seguro viagem, e que a cobertura pela internação é obrigatória somente aos seguros hospitalares.

 

Medidas de contenção contra o aumento abusivo dos preços

 

O aumento da demanda por produtos essenciais, especialmente os de higiene, tem interferido nas regras de mercado negativamente ao consumidor, que vem arcando com o aumento injustificado dos preços.

 

Em resposta os Procons municipais estão firmes na averiguação do ilícito, criando canais de reclamações específicos para produtos e serviços relacionados ao Coronavírus, com respaldo da atuação dos Ministérios Públicos.

 

O acréscimo injustificado de valores aos preços, com exigências de vantagem manifestamente excessiva do consumidor configura ato abusivo, que pode causar ao fornecedor desde o bloqueio dos encartes publicitários até multas e cassação do alvará de funcionamento.

 

Em contrapartida, digno de nota que o aumento injustificado dos preços em nada relaciona-se com o repasse dos custos efetuados pelo fornecedor ao consumidor, em decorrência do aumento dos custos de sua atividade, e que não encontra relação com a anormal conjuntura instalada pela disseminação do contágio.

 

A ponderação entre o aumento injustificado e justificado dos preços dos produtos é tema sensível, que demanda muita atenção do fornecedor para que mantenha o preço dos seus produtos em adesão às regras de mercado, e sem que se instale em afronta ao art. 4º do CDC.

 

Uma outra medida, e que vem sendo autorizada pelos órgão de controle das relações de consumo, é a limitação de unidades de determinados produtos por consumidor. Como forma de garantir a maior pulverização destes produtos entre os consumidores e garantir o acesso a saúde de todos, a prática já vem sendo adotada por diversos estabelecimentos comerciais, como farmácias e supermercados.

 

Nota Técnica n.º 14/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ que dispõe sobre relação entre consumidores e instituições de ensino privadas durante a epidemia e MP 934/2020

 

Segundo pregam as normas da legislação consumeirista, o fornecedor é responsável pelo risco da atividade, independentemente de culpa. Ocorre que, resguardados entendimentos em contrário, há julgados do STJ pela exclusão da responsabilidade do prestador do serviços em casos excepcionais, como caso fortuito e força maior.

 

Assim, com o fito de preservar as relações de consumo, especificamente os contratos de prestação de serviços educacionais, que a SENCOM – Secretaria Nacional do Consumidor – editou algumas orientações.  

 

As soluções têm se baseado em dois fundamentos: i) garantir a prestação do serviço, ainda que de forma alternativa, quando for o caso, como primeira alternativa de solução; ii) garantir ao consumidor que, nos casos em que não houver outra possibilidade, seja feito o cancelamento ou desconto do contrato com a restituição parcial ou total dos valores devidos, com uma sistemática de pagamento que preserve o direito do consumidor mas não comprometa economicamente o prestador de serviço.

 

A primeira solução permite ao prestador de serviços o oferecimento das aulas presenciais em período posterior, com a consequente modificação do calendário de aulas e de férias ou prestação das aulas na modalidade à distância (EAD). Em qualquer das hipóteses, não é cabível a redução ou acréscimo de valor das mensalidades, nem a postergação de seu pagamento.

 

Em caso de cancelamento ou desconto, é imprescindível que sejam fornecidas ao consumidor todas as informações disponíveis para a tomada de sua decisão de forma consciente e autônoma.

 

Nesta conjuntura, é necessário que as instituições de ensino criem ou ampliem seus canais de atendimento ao consumidor, oferecendo todas as informações necessárias à tomada de decisão, seja ela qual for.

No que se refere à MP 934/2020, a normativa foi expedida basicamente com o intento de estabelecer normas excepcionais sobre: (i) o ano letivo da educação básica, que teve excepcionalmente reduzido o número de dias mínimos de efetivo trabalho escolar, desde de que observadas a carga horária mínima anual; (ii) o ano letivo do ensino superior, também excepcionalmente reduzido.

 

Importante destacar que a MP admite a abreviação da duração dos cursos de Medicina, Farmácia, Enfermagem e Fisioterapia, desde que observados determinados critérios. Em contrapartida, dado o caráter transitório desta normativa, que ainda está pendente de aprovação pelo Congresso Nacional e por ora vigente por 60 dias, prorrogável uma única vez por igual período, importante que as instituições adotem tais medidas com cautela e observância da legislação em vigor.  

 

Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020 - define os serviços públicos e as atividades essenciais não suscetíveis de paralisação

 

Como forma de garantir produtos e serviços essenciais, o governo federal expediu a Lei n.º 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 e o Decreto Regulamentador n.º 10.282/2020.

 

Assim, durante o período de quarentena, serviços elencados no referido decreto como o de assistência à saúde, segurança pública, transporte, telecomunicação, energia elétrica, produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos específicos, deverão ser assegurados aos consumidores. 

 

Especificamente em relação ao serviço de energia elétrica, digno de nota é a portaria n.º 6.310/2020[1] recentemente expedia pela ANEEL, que permite a substituição da entrega da fatura mensal impressa aos consumidores pela virtual, por meio de canais eletrônicos, e também garante aos consumidores, ainda que inadimplentes, a prestação do referido serviço pelo prazo de 90 (noventa) dias.    

 

[1] http://www2.aneel.gov.br/cedoc/prt20206310.pdf

 

Considerações finais

 

Feitas estas ponderações, ainda que com estas medidas as chefias dos executivos tenham investido algum esforço na manutenção do equilíbrio das relações consumeristas e da economia, a solução destes conflitos potencialmente representarão um desafio ao judiciário.

 

Isso ocorre pois o diploma do consumidor não dispõe de regulamentação sobre inadimplemento contratual pelo fornecedor em virtude de situações excepcionais – caso fortuito ou força maior-, como o de pandemia que atualmente se instala (salvo em manifestações dispostas em julgados de órgãos do Poder Judiciário pátrio).

 

O CDC em seu art. 84, §1º, somente prevê a conversão da obrigação em perdas e danos nos casos de impossibilidade de dar a tutela específica ou de obtenção do resultado prático correspondente. Ocorre que a posição tradicional do Diploma Civil é pela desoneração do devedor pelas perdas e danos no caso de inadimplemento por caso fortuito ou força maior.

 

A conjugação destas disposições normativas, para que se estabeleça a exoneração ou não do fornecedor pelo pagamento de perdas e danos é tema que possivelmente será abordado pela jurisprudência. Ao que parece, em prol do princípio do diálogo das fontes, potencialmente o art. 84 do CDC poderá ser interpretado à luz do que dispõe o art. 393 do CC, resolvendo-se o embate.