Desde de 1º de julho de 2022 passaram a vigorar alterações na regulamentação do crowdfunding, visando o aprimoramento da disciplina do instituto como forma de fomentar e incentivar o uso deste instrumento para captação de investimentos no mercado por empresas de pequeno porte. Embora possa não ser amplamente difundido, já é uma realidade como instrumento de captação de recursos por pequenas empresas, especialmente no segmento de startups. Mas, inicialmente: o que é crowdfunding de investimento?
Sabe-se que as companhias de capital aberto – geradoras, muitas vezes, de um expressivo faturamento – costumam ter uma vasta gama de opções para captação de recursos. Por outro lado, médias e pequenas sociedades, principalmente startups, enfrentam grandes óbices e desafios para receber investimentos, obter capital e até mesmo linhas de crédito.
Aliás, os investimentos, na maioria das vezes, são praticados por fundos de venture capital ou de privite equity, que, até mesmo por serem estruturas societárias e regulatórias mais complexas, exigem, das empresas nas quais investem, garantias ou track record financeiro, os quais, via de regra, estão totalmente fora das realidades das startups.
De outra banda, existem investidores que, apesar de ansiarem por ingressar neste mercado (startups), individualmente não representam investimento suficientemente capaz de prover os recursos necessários para o desenvolvimento do plano de negócios de uma empresa e não dispõem de estrutura capaz de avaliar e mitigar os riscos envolvidos em investimento dessa espécie, como o fazem grandes players. Carecia o mercado de meio hábil a superar a barreira que se colocava entre os pequenos investidores individuais e as necessidades de investimentos de pequenas empresas, que se mostrasse capaz de aproximar os seus interesses e oferecer estrutura de investimento com menor exposição do investidor aos riscos inerentes aos negócios de sociedades de pequeno porte.
Por outro lado, difundiu-se mundialmente o uso de plataformas na internet com fins a ampliar e dar maior alcance a ações sociais visando levantar recursos para determinada causa ou projeto. O crowdfunding surge, orginalmente, como forma de engajamento em alguma causa e, por conta disto, o usuário aporta recursos sem fazer jus a qualquer tipo de contraprestação, modalidade conhecida popularmente como “vaquinha virtual” ou “Donation Based Crowdfunding”.[1] Nesse caso, tem-se uma doação que poderá ter cunho filantrópico, como, por exemplo, para auxiliar na obtenção de recursos para tratamento médico complexo ou para fins de doação eleitoral.
Com o passar dos anos, o crowdfunding passou a ser empregado como meio de captação de investimento para pequenas empresas, especialmente no segmento de startups de tecnologia (“equity crowdfunding”). Por se inserir no conceito de valor mobiliário que, no Brasil, está albergado no artigo 2º, inciso IX, da Lei Federal nº. 6.385, de 7 de dezembro de 1976[2](“Lei nº. 6.385/76”), o qual, com alguma variação, é adotado em diversas legislações estrangeiras, o uso crowdfunding com a finalidade de oferta ao público de oportunidade de investimento e captação de recursos por empresas foi objeto de regulamentação em diversos países.
Embora possa ser novidade para alguns, a modalidade já era utilizada há mais de 15 (quinze) anos nos Estados Unidos, por exemplo. No Brasil, por sua vez, o crowdfunding foi regulamentado pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) em 2017, por meio da Instrução nº. 588, de 13 de julho de 2017 (“ICVM nº. 588”). Atualmente, o instituto é regulamentado pela Resolução CVM nº 88, de 27 de abril de 2022, tendo recentemente a regulamentação do crowdfunding sido alterada pela Resolução CVM nº. 158, de 28 de junho de 2022, cuja entrada em vigor ocorreu no último dia 1º de julho de 2022 (“Resolução CVM nº. 88”).
Diferentemente do que ocorre nas demais modalidades de oferta pública de distribuição, a regulamentação do crowdfundig pela CVM está baseada na dispensa de registro pelo emissor (empresa que capta o investimento) ou da oferta de distribuição (rodada de investimento), exigindo-se o registro perante a CVM da plataforma eletrônica por meio da qual se dá a captação de recursos.
Dessa forma, possibilita-se a ampliação de acesso à poupança popular a pequenas empresas, sem que se exija delas elevados custos para observância de rígidas obrigações regulatórias. Já o investidor terá participação societária na startuptarget em contrapartida ao aporte realizado, tornando-se sócio do negócio.
Mas, como isso acontece?
São diversas as estruturas que podem ser arquitetadas para, de um lado, realizar a captação de recursos e, de outro lado, tornar o investidor sócio de uma startup.
Cita-se como exemplo oferta em andamento na plataforma digital Kria, para investimento em uma empresa dedicada à comercialização de produtos de higiene e de beleza masculina. A startup busca captara quantia de até R$ 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil reais)[3].
No caso, a fim de congregar os investidores, será constituída uma sociedade em conta de participação (“SCP”), a qual será utilizada como veículo para adesão dos investidores à modalidade de investimento chamada de “Simple Agreement For Future Equity” (“SAFE”) – instrumento oriundo da prática norte-americana em que o aporte de recursos não gera ao investidor direito a qualquer outra contraprestação senão a conversão do capital em participação societária, normalmente mediante a verificação de futuro evento de liquidez e nas condições estipuladas.[4]
Por meio da mesma plataforma digital de crowdfunding, uma empresa gaúcha voltada ao setor da tecnologia arrecadou, em maio deste ano, o montante de R$ 4.410.500,00 (quatro milhões, quatrocentos e dez mil e quinhentos reais), que serão destinados à ampliação do seu portfólio de produtos. [5]
No regime da ICVM nº. 588, o uso do crowdfunding estava restrito a empresas com receita bruta anual de até R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais)[6], e a captação estava limitada ao valor de até R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais)[7].
Durante a audiência pública SDM nº. 02/2020 (“Edital SDM nº. 02/2020”), a revisão da regulamentação foi justifica pela CVM a partir do entendimento de que os limites até então impostos ao uso da modalidade de investimento crowdfunding poderiam ser ampliados, com a finalidade de permitir que a ferramenta de captação de recursos beneficiasse um leque maior de empresas. Para além disso, dentre outros pontos, a Autarquia consignou que “tal movimento tem o condão de colaborar para o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro”.
Nesse contexto, a Resolução CVM nº. 88, conforme alterada pela Resolução CVM nº. 158, diversas alterações normativas foram trazidas, ampliando-se o escopo do crowdfunding, bem como instituindo novas balizas de proteção ao público investidor.
Entre as principais mudanças e inovações trazidas, vale destacar que, desde o dia 1º de julho deste ano, a receita bruta anual do ofertante poderá ser de até R$ 40.000.000,00 (quarenta milhões de reais) e, se ele estiver vinculado a um grupo econômico, a receita bruta consolidada anual do conjunto de entidades sob controle comum poderá ser de até R$ 80.000.000,00 (oitenta milhões de reais)[8].
Outra importante inovação trazida pela atual regulamentação do instituto é a possibilidade de ser contemplada na oferta via crowdfunding adistribuiçãosecundária de participação societária, isto é, a venda de participação já detida por investidores, o que era vedado no regime da ICVM nº. 588. Para tanto, exige-se a observância das seguintes limitações: (i) a oferta secundária não poderá ultrapassar 20% (vinte por cento) do valor total que se busca captar, em cada rodada de investimento via crowdfundig; (ii) o grupo de controle não poderá alienar participação superior a 20% à detida e não haja perda da condição de controlador(es) por esse(s); e (iii) caso a distribuição da oferta seja parcial, haja observância dos requisitos (i) e (ii) de forma proporcional[9].
Além disso, o valor alvo máximo de captação triplicou, passando para até R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais)[10], podendo, inclusive, ser ofertado um lote adicional conhecido por “green shoe” de até R$ 25% (vinte e cinco por cento) do valor alvo máximo, desde que seja respeitado o limite de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais)[11].
Diferentemente do regime previsto na ICVM nº. 588, o aprimoramento da regulamentação passou a autorizar a realização de anúncios públicos ao mercado como forma de publicização da oferta, inclusive com a utilização de material publicitário, contanto que sejam respeitadas as regras definidas na Resolução nº. 88[12].
As modificações trazidas pela nova regulamentação do crowdfunding devem, muito provavelmente, ampliar a penetração desse mecanismo no ambiente de negócios, fortalecendo-o como instrumento de captação especialmente para o mercado de startups, inclusive pelo fato de possibilitar o seu uso como forma de oferecer maior liquidez aos investidores, contemplando a oferta via crowdfunding a distribuição secundária de participação societária (venda de participação pelo investidor).
Considerando as peculiaridades do tema, a Carpena Advogados coloca-se à disposição para sanar quaisquer dúvidas, oferecer orientações sobre o assunto e prestar o suporte que se fizer necessário.
Julia Ribeiro Feijó
Cesar Augusto Fagundes Verch
[1] Disponível em: http://equity.org.br/equity-crowdfunding/. Acesso em 17 de junho de 2022, às 11h01min.
[2] Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: (...) IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
[3] Disponível em: https://app.kria.vc/agents/users/offers/285. Acesso em 17 de junho de 2022, às 15h17min.
[4] Disponível em: https://app.kria.vc/agents/users/offers/285. Acesso em 17 de junho de 2022, às 15h20min.
[5] Disponível em: https://airtable.com/shrjFYn8gWeAo24gr/tbl5v35Mue8eqCB7Q/viwsvRv0GO5kzFwxv?blocks=hide. Acesso em 17 de junho de 2022, às 16h09min.
[6] Art. 2º, III, da ICVM nº. 588.
[7] Art. 3º, I, da ICVM nº. 588.
[8] Art. 2º, VII e §2º, da Resolução CVM nº. 88.
[9] Art. 5º, VII, da Resolução CVM nº. 88.
[10] Art. 3º, I, da Resolução CVM nº. 88.
[11] Art. 5º, VI, da Resolução CVM nº
[12] Art. 11, da Resolução CVM nº. 88.